Soldado do Exército brasileiro faz guarda em área de fronteira com a Colômbia (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Vinte minutos para abrir uma página na internet. Racionamento de
energia elétrica, provida por até 16 horas diárias por um gerador. Sinal
de celular, nem pensar. Telefonia fixa? Apenas um orelhão. Água da
chuva para beber e água do rio para tomar banho, lavar roupa e louça.
Abastecimento de comida e remédio a cada 30 ou 45 dias, dependendo da
disponibilidade de um avião.
Militares ficam isolados na mata, na cabeceira dos
rios da divisa do país (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Grande parte da Amazônia ainda vive como se estivesse na idade da
pedra, pois o poder público não está presente. Quem visita estas
unidades volta com um sentimento de indignação"
Guilherme Theophilo de Oliveira, general responsável pela logística em estados do Norte
Esta é a realidade dos militares que vivem em bases isoladas nas
fronteiras para defender a Amazônia. São 24 pelotões especiais de
fronteira (PEF), com efetivo entre 20 e 80 soldados cada um. Eles
começaram a ser criados em 1921 nas divisas do Brasil com Bolívia, Peru,
Colômbia, Venezuela e Guiana para reprimir narcotráfico, contrabando de
armas, biopirataria, exploração ilegal de madeira e minérios, além de
impedir invasões estrangeiras.
"Grande parte da Amazônia ainda vive como se estivesse na idade da
pedra, pois o poder público não está presente. Quem visita estas
unidades volta com um sentimento de indignação", diz o general Guilherme
Theophilo de Oliveira, responsável pela logística nos estados de
Rondônia, Acre, Amazonas e Roraima. "Eu não admito hoje, no século XXI,
que um pelotão sobreviva da caça e da pesca, como os índios viviam",
afirma.
O
G1 visitou seis pelotões, alguns localizados nas
tríplices fronteiras, onde os militares vivem em condições piores do que
as enfrentadas pelos colegas que vão para a missão de paz no Haiti. Em
2012, em uma série de reportagens sobre a situação de sucateamento do
Exército,
o G1 mostrou que o país possui munição para se defender por apenas uma hora de guerra e
que a Amazônia é preocupação número 1 dos militares.
"Na Amazônia, a logística é uma dificuldade natural, pois os meios de
transporte são precários. Não há rodovias e o sistema hidroviário não é
equipado para usarmos. Além disso, em grande parte do ano, os rios não
são navegáveis. Mas essas dificuldades não nos atrapalham na defesa das
fronteiras", garante o comandante da Amazônia, General Eduardo Villas
Boas.
Em 16 de novembro, os geradores de dois pelotões pararam ao mesmo
tempo, devido ao uso de combustível adulterado. O general Theophilo teve
que pedir ajuda à FAB que, apesar das restrições de horas de voo,
ajudou, em caráter de urgência, a repô-los. A tropa ficou mais de 24
horas sem energia e a carne congelada foi mantida sob gelo. Outros dois
pelotões estão com pistas de pouso ruins e curtas demais, sem condições
para grandes aeronaves. Por isso, ao invés de 60 homens, apenas 17 são
mantidos no local. Familiares que viviam com eles foram retirados.
Nos últimos 10 anos, a percentagem do Produto Interno Bruto (PIB)
investido em defesa gira em torno de 1,5%, segundo números do Ministério
da Defesa. Em 2013, o orçamento aprovado foi de R$ 64,9 bilhões - sendo
R$ 46,332 bilhões para pessoal e encargos sociais e outros R$ 18,635
bilhões para custeio e investimento. Contudo, houve contingenciamento de
recursos. Desde 2010, este bloqueio vem atingindo altos patares,
chegando a até 22% do total.
Para 2014, o Projeto de Lei Orçamentária prevê a destinação de R$ 72,8
bilhões, sendo 68,6% para despesas com pessoal e R$ 16,2 bilhões para
custeio e investimento. Os comandantes das Forças Armadas reclamam,
porém, que a verba é insuficiente e seria necessário quase o dobro – R$
29,8 bilhões para atender às ideias da Estratégia Nacional de Defesa,
assinada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 1998 e ajustada
ano a ano.
A Estratégia Nacional de Defesa, que ainda caminha devagar e pouco saiu
do papel, prevê o Brasil com capacidade para controlar todo o espaço
aéreo, marítimo e os 17 mil kms de divisas terrestres com 10 países até
2030, em busca de um assento no Conselho de Segurança da ONU. Um dos
projetos do documento é o "Sistema de Monitoramento de Fronteiras
(Sisfron)", que pretende vigiar com radares e sensores os 17 mil
quilômetros de divisas com 10 países ao custo de R$ 12 bilhões até 2030.
A iniciativa começou a ser implantada no Centro-Oeste em 2013 e chegará
em 2014 ao Acre e a Rondônia.
Dinheiro, pra quê?
Devido a restrições orçamentárias, a Aeronáutica faz só uma viagem por
mês a cada unidade. Quem precisa sair de férias ou precisa de algo da
cidade, como medicamento, tem que esperar o próximo avião chegar. Por
estarem na fronteira, os soldados recebem um adicional de 20% no
salário, que é guardado ou serve para ajudar a família. De 24 pelotões,
apenas 13 possuem terminais do Banco do Brasil, mas em só 1 ele está
ativo. O dinheiro fica na carteira. Até porque não há nenhum bar,
farmácia ou loja por perto na selva.
Em Boa Vista, o avião que apoia 6 pelotões de Roraima teve um problema e
permaneceu parado para manutenção por mais de uma semana. "Reduzi o
efetivo e tirei os familiares de pelotões onde a pista está com
problema, pois não temos condições de mandar comida para todos. Ao invés
de pousar um avião capaz de levar 6 ou 7 toneladas, a FAB só pode
operar com aeronaves menores, que levam até 600 quilos", avalia o
general Theopilo.
Garrafas de refrigerante e cachaça servem para
guardar vinagre em base (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Em Pari-Cachoeira, na divisa com Colômbia, militares
reclamam de alojamentos (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Cantis usados na selva são guardados em base
militar de Vila Bittencourt (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Só neste ano o Exército conseguiu fazer um levantamento da
infraestrutura disponível em cada um dos 24 pelotões da Amazônia: no
total, há 38 geradores, mas menos da metade (16) está disponível para
uso. Eles são de 13 marcas diferentes, o que dificulta a manutenção.
Uma empresa colocou sistemas de internet em 23 deles – mas em apenas 7
está operando. Há 20 anos, 6 pequenas centrais hidrelétricas foram
instaladas em 6 pelotões, mas, distantes das bases, foram inutilizados
devido às dificuldades de apoio e o alto custo de manutenção. A ideia do
general Theophilo é repassá-las agora para concessionárias estaduais.
Os investimentos nos pelotões são feitos pelo programa Calha Norte do
governo federal, que busca habitar áreas remotas do Norte do país para
garantir soberania. Em 2012, o programa recebeu R$ 72 milhões para
pequenos investimentos e resolver problemas pontuais, como goteiras e
remendos. Contudo, até dezembro, apenas 80% dos recursos havia sido
liberado. E a estimativa é que seria necessário ao menos R$ 150 milhões
anuais só para manter o que existe.
Atualmente, o Exército possui 12 helicópteros em Manaus, como o Black
Hawk e o Cougar, mas eles são usados apenas em operações e não para
logística (como distribuição de comida), devido ao alto custo da hora de
voo, que chega a US$ 4.500 (R$ 10.620). Segundo o general Villas Boas, a
partir de 2014 chegarão a Amazonas 8 novos helicópteros franceses de
maior capacidade e também balsas, que serão usadas para apoiar as tropas
isoladas. Em 2013, duas lanchas blindadas foram compradas da Colômbia,
mas nem começaram a ser usadas nas fronteiras.
Histórico de confrontos
Apesar das dificuldades, as histórias de confrontos com guerrilheiros,
traficantes ou criminosos na Amazônia rodam de boca em boca entre os
soldados. O temor de reações às tropas, que param todas as embarcações
que passam pelos rios nas divisas, é real.
O maior confrono ocorreu em 1991, quando integrantes das Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (Farc) atacaram o pelotão Traíra, matando
três militares brasileiros, ferindo outros 29 e roubando armas e
munições. Na ocasião, o então presidente Fernando Collor autorizou uma
retaliação, e os militares fizeram uma operação na Colômbia para tentar
recuperar o material levado.
Depois disso, outros dois incidentes ocorreram, ambos em pelotões visitados pelo
G1:
em 2002, o Exército matou guerrilheiros que navegavam pelo Rio Japurá,
perto do pelotão de Vila Bittencourt, onde 49 soldados guardam a divisa
com a Colômbia.
Com cerca de 200 moradores e localizada a cerca de 1.498 km de Manaus, o
único acesso à comunidade é por avião: leva-se uma hora de voo a partir
de Tabatinga, cidade amazonense que faz fronteira com a colombiana
Letícia. Lá, o único orelhão não funciona e a população usa a internet
da base militar com banda de 64 Kbps (kilobits por segundo). Para se ter
uma ideia, é considerada banda larga web com velocidade de transmissão
de dados ao menos quatro vezes superior, de 256 Kbps.
"Temos só dois caixas eletrônicos aqui, do Banco do Brasil, que foram
instalados em 2009. Nenhum deles têm dinheiro para sacar. Só é possível
fazer transferência em um deles, porque o tenente deu um jeito nisso",
afirma a professora Maria do Socorro, de 50 anos. Os caixas ficam dentro
da academia dos soldados.
Dos 24 pelotões de fronteira, 13 têm caixa eletrônico.
Desses, um funciona, mas nele não é possível sacar
dinheiro (Foto: Tahiane Stochero/G1)
Em Cucuí, tríplice fronteira com Venezuela e Colômbia,
avião da FAB pousa em clareira de 800 metros
(Foto: Tahiane Stochero/G1)
Araras andam soltas e brincam com militares em
Yauretê, comunidade na Cabeça do Cachorro, fronteira
com a Colômbia (Foto: Tahiane Stochero/G1)
O tenente Éricson Maciel, comandante do pelotão do Exército, é a única
autoridade no local. "A maior dificuldade aqui é logística. Estamos
distantes de tudo, a 50 minutos de voo de Tabatinga ou 8 horas de rio da
primeira cidade. O rio é cheio de pedras, com cachoeiras, é complicado
navegar. Só recebemos comida para a tropa, mas por vezes precisamos
apoiar a população. Água para a comunidade somos nós que fornecemos,
porque tiramos do rio e não existe tratamento. Para beber, é da chuva
(tratada com hipoclorito de sódio). A própria natureza já toma conta
disso", afirma o tenente.
Outro confronto lembrado pelas tropas brasileiras na Amazônia ocorreu
em 2006, segundo o tenente David Dias, que comanda o pelotão de Cucuí, à
beira do Rio Negro, e na tríplice fronteira do Brasil com a Venezuela e
Colômbia. Na época, o oficial que comandava a base militar no local
teve a iniciativa de atacar uma embarcação com criminosos que estavam
trazendo droga para o Brasil, matando alguns suspeitos.
O pelotão de Cucuí é o mais vigiado de todas as visitadas pela
reportagem: canhões de luz ficam postados nas margens e seis soldados e
um sargento ficam de prontidão 24 horas fortemente armados. Um deles
leva uma submetralhadora.
"Aqui, nossa missão é difícil, combatemos transporte de ilícitos, como
contrabando de animais silvestres, armas e drogas. Toda embarcação é
obrigada a parar para ser revistada. Quem descumprir a ordem, vamos
atrás ou avisamos as tropas localizadas em bases mais à frente para
tentar para-los", explica o tenente Dias.
O isolamento em Cucuí é enorme e é preciso uma verdadeira maratona para
chegar na base militar: de São Gabriel da Cachoeira, cidade de 36 mil
habitantes localizada na tríplice fronteira, são mais 30 minutos de voo.
Avista-se, aberta em uma clareira no meio da selva, uma pista de
asfalto ruim, esburacada, não sinalizada e curta - cerca de 800 metros -
onde só aviões da Aeronáutica conseguem pousar. De lá, mais um
quilômetro de caminhada na mata fechada para, enfim, chegar à beira do
rio e embarcar em uma voadeira - um pequeno barco de madeira movido a
motor a diesel.
Soldados defendem fronteira com Colômbia e
Venezuela em Cucuí, onde Exército afundou barco
com drogas em 2006 (Foto: Tahiane Stochero/G1)
São mais 30 minutos de voadeira até chegar ao monte Cucuí, que abriga o
pelotão. Do outro lado do Negro, a Venezuela. À frente, a Colômbia.
Uma antiga ponte, que ligava uma estrada de chão à comunidade, foi
incendiada pelos índios em 2010, após a morte de um deles acidente ao
cair da ponte. Desde então, a área, que chegou a ter até 5 mil
moradores, viu a população diminuindo aos poucos: hoje menos de 800
pessoas. A única rodovia que permitiria o acesso a Cucuí, a BR-307, foi
planejada durante o regime militar e ficou pela metade, por incluir
áreas indígenas e de conservação ambiental.
Em julho, um homem foi preso e outro morto após troca de tiros com
agentes da Polícia Federal no rio Solimões. Com eles, havia drogas,
armas e munição. A mesma lancha havia escapado de uma abordagem em maio,
após tiroteio. Histórias semelhantes são ouvidas nos quartéis, mas
ninguém confirma datas ou suspeitos mortos.
Em Vila Bittencourt, o soldado Valdecir Curico de Souza, de 26 anos,
tem a missão de "dar o primeiro tiro" caso alguma embarcação suspeita
não pare ao ser abordada na entrada do Brasil. Ele diz, porém, que o
maior perigo não é o criminoso, mas os insetos.
"Aqui neste pelotão é tranquilo o trabalho. Em algumas outras bases, os
insetos atacam o dia inteiro", diz. "O que precisa melhorar aqui? Muita
coisa... o colchão que eu durmo veio há mais de 20 anos e está um
buraco só. E a farda já está amarelada, como o senhor pode ver".
Fonte: http://g1.globo.com